O Rock Brasileiro nos anos 70 - Parte 01
Esta matéria será dividida em 3 partes. O objetivo é tentar traçar um pequeno panorama do que aconteceu na época, um período fértil para o rock no Brasil, infelizmente marginalizado e subestimado pela crítica, ainda carente de mais informação e registros. Se houver alguma correção a ser feita ou informações a serem acrescentadas, por favor contribua pelos comentários.
Falar de rock no Brasil durante a década de 70 passa, irremediavelmente, por falar também de história e política. A fatalidade histórica que foi a ditadura militar no período 1964-1985 foi a forja na qual foi conformada a “cara” sofrida e suada de nosso rock e também foi a pá que cavou a sepultura de muitos jovens talentos. Outro fator que é fundamental a se analisar na história do nosso rock durante o período, apesar dos narizes torcidos dos mais radicais, é a MPB. Chega um ponto em que é praticamente impossível dissociar rock de MPB nos anos 70, numa via de dupla influência e muitas transas.
Primeiramente, a ditadura militar. Em seu período mais brando (de 64 a idos de 67), permitiu o bravo florescimento de uma cultura de identidade nacional, fosse na música, no teatro, no cinema ou nas artes plásticas. Embalados pela renovação cultural do Brasil dos anos 50 e os ventos de modernização daquela época, surgiram nomes que ainda hoje são referência em arte – Glauber Rocha, Ferreira Goulart, Carlos Vergara, José Celso Martinez, Chico Buarque, Julio Medaglia, etc... Mas no momento em que acontecia o levante juvenil no mundo contra toda forma de autoritarismo e a favor das liberdades individuais, o cinto apertou por aqui e a barra pesou para todos. Este momento da catarse coletiva jovem também foi acompanhado de muitas mudanças na cultura rock, que foram muito pouco assimiladas aqui no Brasil, que a partir de então, se iniciava num período de escuridão e fechamento cultural, expulsando artistas do país e dificultando a troca artística com outras partes do mundo.
Além do fechamento e do combate a toda e qualquer manifestação que ousava soprar sobre o paranóico poder estabelecido, a força da MPB era imensa (provavelmente muito maior do que é hoje). O Brasil, devido a genialidade de vários músicos, conseguia se desvincular de formas latinizadas dos países caribenhos e das técnicas operísticas dos cantores do rádio e criar seu próprio som, captando toda a música realmente folclórica brasileira, levando-a à tona e dando-lhe novas roupagens. Os festivais da música brasileira de 1967 e de 1968 geraram tantos nomes e tão geniais trabalhos, que foram fundamentais para a consolidação da linguagem da música não-erudita brasileira. Até hoje não surgiu nada nesta linguagem que superasse em importância os acontecimentos e os nomes revelados naqueles dois festivais – Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jorge Ben, Elis Regina, Geraldo Vandré, Chico Buarque, Nara Leão, Tom Zé, Jards Macalé, Rogério Duprat, Gal Costa, Mutantes, etc...
A ditadura via no rock um perigoso aliado da rebeldia da juventude. E essa mesma juventude tinha muita dificuldade em estar sintonizada com o que acontecia com o rock nos EUA e Inglaterra. São inúmeros casos de discos que foram lançados aqui com atraso e outros tantos mutilados (com edições limadas, capas diferentes das originais, etc...), além, é claro, dos muitos e muitos que não chegaram nem a ser lançados. Por outro lado, a inventividade de nossa música também era atrativa aos jovens, que se identificava com as canções de protesto e o espírito também jovem da MPB da época. Justamente o período de transição entre os Beatles e as novas tendências do rock - psicodelia, arte-rock e rock pesado - na virada dos anos 60 para os 70 foi o período de maior vácuo para o rock brasileiro, que ainda vagava pelo som beat da Jovem Guarda (já descambando gradativamente para uma música pop de orientação adulta). Os Mutantes pareciam ser a grande novidade de larga difusão, altamente ligados com o conceito tropicalista naquele momento, em que a MPB era uma das engrenagens daquela usina sonora, aliada ao fuzz psicodélico e ao experimentalismo. Também existiu, nas grandes cidades, uma cena beat paralela, de pequeno alcance, ligada ao circuito dos clubes e bailes, com bandas que iam evoluindo, aos poucos, para composições próprias de teor mais psicodélico e agressivo. Porém, existem pouquíssimos registros (a maioria em compactos) e que nem sempre eram realmente representativos dos sons que as bandas apresentavam nos palcos, devido ao total estranhamento das gravadoras e o medo da ditadura.
A saída para muita moçada cabeluda da época foi o desbunde. Se mandar para comunidades hippies e ficar por lá um tempo curtindo uma vida alternativa. Isolados da sociedade de um país já praticamente isolado culturalmente. Por isso, nos idos de 68 a 72, uma época extremamente profícua para o rock, época de liberdade de criação e experimentação, o Brasil praticamente produziu quase nada nesse quesito, com bravas e notáveis exceções – “Não Fale com Paredes” do Módulo 1000, “Geração Bendita”, trilha sonora do filme “É isso aí Bicho”, pela banda Spectrum, o som pesado nos compactos da Bolha – “18:30/Sem Nada” e da banda A Década, os discos do Som Imaginário e dos Mutantes com sua lisergia experimental e mais alguns poucos ainda mais obscuros.
O que aconteceu neste período foi a gestação de uma MPB temperada com rock em discos excelentes, e que agregaram o rock (principalmente a influência dos Beatles) como mais um adicto em sua flavorização. “Transa” de Caetano Veloso, “Expresso 2222” de Gilberto Gil, “Eu quero é botar meu bloco na Rua“ de Sérgio Sampaio, “Clube da Esquina” de Milton Nascimento e Lô Borges, “Passado, Presente e Futuro” de Sá, Rodrix & Guarabyra, “Fa-tal” de Gal Costa e “Acabou Chorare” dos Novos Baianos foram trabalhos que tiveram boa repercussão entre a moçada que escutava rock e tiveram uma ponta de sucesso dentro do mercado musical brasileiro.
Em 1973, um acontecimento marcante que abriu a porta para que outros conseguissem ao menos um registro fonográfico – o sucesso meteórico dos Secos & Molhados. Este é um grupo em que o binômio Rock-MPB é constante. Ganhando premiação pelas vendas de seu disco homônimo e lotando ginásios por onde passava, a banda conseguiu colocar hits no rádio e aparecer na TV, com um som bastante artístico, performático, ousado e de bastante qualidade. Um feito realmente único até então e que fez com que as gravadoras passassem a compreender um pouco melhor o que era o rock e o poder que ele possuía. No ano seguinte, surge à tona uma produção mais intensa das bandas locais. Os shows de Alice Cooper no Brasil arrebataram a atenção de milhares de jovens e colocaram o rock em pauta na grande mídia, para o bem e para o mal. Estes dois fatores propiciaram um tímido deslanche da produção local na época e nos anos de 74 a 76 aconteceram alguns dos melhores trabalhos do rock brasileiro na década de 70.
Evidentemente que o que aconteceu a partir de 74 no rock brasileiro já era embrião em anos anteriores, mas ficava perdido nas garagens e porões particulares. Só a partir daí que vieram a luz. Analisando as obras das bandas do período, já se consegue perceber um alinhamento maior com a cultura mundializada do rock. A linguagem do rock progressivo, especialmente, foi interpretada muito bem no Brasil e assimilada mais ou menos na mesma época que em países periféricos, até mesmo da Europa e da América do Norte. No período de 71 a 73, apenas as bandas inglesas pioneiras (e que se tornaram “referências-mor” no estilo), algumas alemãs e outras poucas italianas estavam realmente delineando o estilo e o fundamentando. Mais ou menos a partir de 74 é que surge uma leva maciça de bandas em todas as partes do mundo, assim como no Brasil, se aventurando nos ecléticos terrenos da chamada “arte-rock”. Por ter uma abordagem bem mais aberta e menos padronizada do que outros estilos de rock, o rock progressivo entrou com muita força aqui no Brasil, trombando com a força de nossa música popular. A MPB teve papel fundamental para diferenciar completamente a produção de rock (progressivo) do Brasil, ao mesmo tempo que diluindo a face realmente “rock” da coisa, também colocava-lhe um toque altamente original. Para efeitos didáticos, seguem os acontecimentos divididos por ano, para uma melhor explanação.
1974
Em 74, os Secos & Molhados gravaram seu segundo disco, não tão bem sucedido como o primeiro, e encerraram as atividades por um racha interno. Os Mutantes, totalmente repaginados, sem Rita Lee e Arnaldo Baptista, lançavam o antológico “Tudo foi feito pelo Sol”. Já no pioneirismo de um rock bastante elaborado, gravaram ainda em 73 e com a participação de Arnaldo Baptista, o disco “O A e o Z”, que só veio a ser lançado muitos anos depois. “Tudo foi feito pelo Sol” é totalmente diferente dos trabalhos anteriores da banda. Foi marcado por um som sério, virtuoso, com letras de tom espiritual e positivista, experimentação e claras influências de grupos ingleses como o Yes e o Genesis. O disco vendeu bem para os padrões da época e esta fase foi a mais bem sucedida da banda, comercialmente falando, a despeito de ser completamente ignorada e rechaçada (assim como o rock progressivo, em geral) pelos críticos musicais atuais. Como já era uma banda bem sucedida anteriormente, tinha bons equipamentos e conseguiu produzir um material de bastante qualidade técnica (além da inegável qualidade musical), o que não aconteceu com várias outras bandas (para não dizer a maioria).
Rita Lee a partir de 72 começou a voar com as próprias asas. Não se sabe bem se foi decisão particular de sair por insatisfação ou de ter sido despedida da banda, numa situação até hoje repleta de controvérsias e relatos conflitantes. O importante é que dela se gerou uma nova banda, também de sucesso, o Tutti Frutti, cuja estréia aconteceu em 1974 com o excelente disco “Atrás do Porto tem uma Cidade”. Rita Lee já tinha gravado dois discos solos (“Build Up” e “Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida”) e um disco em parceria com Lúcia Turnbull, chamado “Cilibrinas do Éden”, em 73, numa fórmula de um rock básico e festeiro, por vezes pesado, que continuou a seguir com o Tutti Frutti.
O show de Alice Cooper, ocorrido em março de 74, foi uma ocasião gloriosa para um dos grandes grupos da época, o Som Nosso de Cada Dia. O núcleo inicial formado em 71 pelo ex-tecladista dos Incríveis, Manito, se convertera num trio que tinha acabado de gravar o antológico disco “Snegs”, com um rock progressivo impactante, autêntico e transcendente e foi selecionado para a abertura dos shows de Alice, se apresentando diante das mesmas milhares de cabeças que assistiram o show do artista estrangeiro. Este foi um caso de banda que ficou prejudicada pela produção pouco esmerada e com poucos recursos, mas ainda sim, com muita ousadia, trouxeram uma música de alto conteúdo artístico e uma elevação para o rock da época. Segundo o próprio Pedro Baldanza, baixista e compositor da banda, tudo aconteceu muito rápido naquele período 73-74 - a composição do repertório, a gravação do disco e a abertura dos shows para Alice Cooper. O disco já tinha sido registrado previamente desde o fim de 73, mas a gravadora só tocou o projeto em frente depois da repercussão da abertura dos shows de Alice Cooper. Também nessa mesma época, o multi-instrumentista Manito sai do grupo, que se vê obrigado a uma reformulação, virando um quarteto e trabalhando em um novo repertório para os anos seguintes.
Antes do Som Nosso de Cada Dia, Pedro Baldanza também participou de um obscuro registro de uma banda paulistana, chamada Perfume Azul do Sol, que como uma exceção, conseguiu gravar um disco em 74 (chamado “Nascimento”), mas morreu antes de sequer tocar ao vivo, pela debandada da tecladista do grupo. O som do grupo no disco tem uma produção também crua, mas é muito interessante, fundindo música regional nordestina, samba-rock e rock com uma roupagem totalmente hippie, valendo muito o garimpo.
No Rio de Janeiro, o grupo O Terço dava seu definitivo passo rumo ao som progressivo que o tornou célebre e o colocou como um dos maiores nomes do rock brasileiro da época. Participaram como banda de apoio de Sá & Guarabyra no disco Nunca, depois da partida de Zé Rodrix. Neste trabalho, já se destacam auxiliando nas vocalizações e em belos arranjos, oferecendo pequenos toques progressivos ao cancioneiro acústico da dupla. No ano anterior, haviam lançado seu segundo disco ainda como trio, que aparentemente carecia de direcionamento, não se firmando entre um nascente rock progressivo e uma linhagem puramente hard, guiada por guitarra fuzz. Em 74, estavam reformulados como quarteto com adição do tecladista mineiro Flávio Venturini, que foi fundamental para a nova sonoridade do grupo, acrescentando positivamente na questão harmônica e vocal. No fim daquele ano (novembro de 74), entrariam em estúdio para registrar “Criaturas da Noite”, seu principal trabalho e um dos principais expoentes do rock progressivo “brasileiro e abrasileirado”, com incursões pela música popular, especialmente a desenvolvida por Milton Nascimento a partir de “Clube da Esquina” e por Sá, Rodrix & Guarabyra. Apesar do disco ter saído em 75, a banda já experimentava, com sucesso, músicas do novo repertório nos shows anteriores ao lançamento.
A cena paulistana gestava em seu berço underground o grupo Apokalypsis, formado pelo baterista, vocalista e compositor, Zé Brasil, amigo de Arnaldo Baptista, recém saído dos Mutantes, que estava iniciando sua carreira solo com a banda Space Patrol (da qual Zé inicialmente fazia parte) e o introspectivo trabalho Loki, lançado também naquele ano de 74. Zé saiu antes da gravação do disco para iniciar um novo projeto, o Apokalypsis. Oficialmente na época, a banda não conseguiu registrar nenhum disco, porém recentemente, os fãs e interessados pelo rock brasileiro da época foram agraciados pelo lançamento de dois shows do grupo, um de 75 (pelo projeto Rock da Garoa) e outro de 74 (no Teatro Aquarius, em Sampa). Outra banda bastante ativa neste período em Sampa era o Scaladácida. Formada em fins de 72, abrigou o inglês Ritchie Court, flautista e vocalista, que ficaria famoso depois em carreira solo e que participou de outros projetos importantes. Cantavam em inglês um repertório de rock progressivo e jazz-rock, segundo relatos do próprio Ritchie e rodaram bastante o pequeno circuito de espaços para rock no período. Até hoje não existem registros lançados do Scaladácia e não ter conseguido assinar um contrato foi um dos motivos do fim da banda, pois Ritchie estava como turista no país e teve problemas com o visto. A banda consistia de Azael Rodrigues (bateria, futuro membro do Divina Increnca), Fábio Gasparini (guitarra), Sérgio Kaffa (baixo) e Ritchie (flauta e vocal). Segundo o mesmo relato, existe material registrado ao vivo da banda (esperamos ainda vê-lo sendo lançado um dia!).
Outros grupos que iniciaram em 74 foram o Terreno Baldio, em São Paulo, o Vímana e o Bacamarte no Rio. Fonograficamente tivemos a estréia da Casa das Máquinas, banda já bem profissionalizada, formada pelo experiente baterista dos Incríveis, Netinho. Não foi com esse disco que a banda ficou famosa e obteve prestígio, pelo fato de ser um trabalho irregular e pouco direcionado. Tivemos a estréia do original grupo A Barca do Sol, que também contou com o flautista Ritchie, posteriormente. Um grupo que rechaçava o título de rock por si só, por ser bastante baseado em instrumentos acústicos e ter um conteúdo extremamente poético nas letras, puxando muito a MPB. Mas a fusão com outros elementos aproximava bastante o som do rock, especialmente o de grupos do chamado “folk-rock” europeu. O disco foi produzido por Egberto Gismonti e utilizava sintetizadores em duas de suas faixas (“Alaska” e “Arremesso”), o que também o aproximava da linguagem do rock progressivo, que usava e abusava desse tipo de teclado. Por fim, o disco homônimo do Moto Perpétuo, banda com uma interessante combinação de rock progressivo, MPB e algum temperinho pop, mais conhecida até por ter sido o primeiro trabalho do tecladista e vocalista Guilherme Arantes, que partiria pouco depois para uma bem sucedida carreira solo de orientação pop. Foram lançados pelo mesmo produtor dos Secos & Molhados e saíram com disco pela Continental, mas não tiveram o mesmo êxito. Do Moto Perpétuo também fazia parte o grande guitarrista Egídio Conde, que integraria o Som Nosso de Cada Dia depois da saída de Manito, os igualmente excelentes músicos Diógenes Burani (baterista, ex-integrante do grupo O Bando) Cláudio Lucci e Gerson Tatini.
Estréia importante de se citar é dos paulistanos do Made in Brazil, banda lendária e recordista mundial em troca de formações de músicos. Na ativa até hoje, tem respeito e admiração de um público cativo, com seu rock n’ roll básico. E essencial também é falar de Raul Seixas, que atingiu o grande público com o disco “Gitá” em 74 e o enorme sucesso da faixa homônima. Raul se deu mal com a ditadura por pregar a tal “Sociedade Alternativa”. Foi preso em 73, tomou uns sopapos da polícia e foi mandado para umas “férias forçadas” nos EUA. Quando o disco estourou, a ditadura achou por bem acabar com o sumiço de Raul e trazê-lo de volta ao país, onde se consolidou como uns dos maiores nomes do rock e talvez o único dessa época que realmente rompeu a barreira do tempo, sendo conhecido e celebrado por muita gente até hoje.
Em 74 o rock realmente ficou grande no Brasil e as revistas noticiavam que a coisa viria num crescente, com apresentações a serem confirmadas de grandes bandas como Pink Floyd, Led Zeppelin, Yes, Black Sabbath, Joe Cocker, Black Oak Arkansas e várias outras. A única que realmente esteve mais próxima de se concretizar foi a do Traffic, que já tinha até data marcada, mas foi abortada porque a própria banda encerrou as atividades.
Ronaldo Rodrigues é Colaborador Esporádico