Além dos Cogumelos

O Rock Brasileiro nos Anos 70 - Parte 03

Por Ronaldo Rodrigues | Em 22/05/2010 - 20:26
Fonte: Alquimia Rock Club

76 já demonstra um certo cansaço na cena, frente a tantas dificuldades enfrentadas pelas bandas para seguir adiante. Na verdade, tocar rock no Brasil naquela época era quase que uma militância. Havia verdadeiros embates a serem travados e muita gente boa não trombou o desafio de dar murro em ponta de faca por muito tempo. Além disso, a barra tava pesando musicalmente. O rock de então perdia terreno com a juventude para o simplismo e rebeldia punk e para a pasteurizada música das discotecas.


Ainda sim, durante o ano, aconteceram diversos lançamentos de grande qualidade musical e que fundamentaram a mensagem daquela geração de rockeiros em nosso país. O Terço, no rastro do sucesso de “Criaturas da Noite”, lançaram “Casa Encantada”, um trabalho que aprofundou as experiências sonoras anteriores, mas com um brilho ligeiramente menor. Havia referências mais claras à MPB e ao rock progressivo, porém não com a mesma inspiração. Algumas músicas do período ficaram de fora do disco, como a extensa Suíte, Velho Silêncio, Rapoza Azul, entre outras. Hoje, esses sons podem ser conferidos no disco “O Terço Ao Vivo 76”, com uma apresentação da banda no Teatro João Caetano. O sucesso de “Casa Encantada” também foi grande e a banda se apresentou cerca de 200 vezes por ano (neste período entre 74 e 76), sem dúvidas, o período mais bem-sucedido do grupo, em público e crítica. No ano seguinte, Flávio Venturini viria a deixar o grupo.


Um dos mais incríveis trabalhos do rock na época foi devidamente estragado por uma total falta de visão empresarial e outras questões comerciais – Mutantes Ao Vivo. A formação da banda na época era Sérgio Dias, Paul de Castro (creditado como Paulo de Castro, tocando baixo e violino), Rui Motta e Luciano Alves. A banda tinha feito uma temporada de concertos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (espaço onde aconteciam muitos eventos das bandas da época), em agosto, e havia registrado o material para lançar um ousado projeto – um disco ao vivo quase todo de músicas inéditas! O plano era de que todo o material saísse num disco duplo, com produção gráfica caprichada. Mas foram limados pelo produtor Peninha Schmidt, que alegou que o projeto seria inviável porque o custo de um disco duplo não poderia ser repassado e o disco encalharia, enfim, mil e uma desculpas. Para piorar, o disco ainda foi todo retalhado – faixas cortadas e mixadas na ordem diferente da que foi executada no show. Isso gerou uma insatisfação muito grande na banda, e é uma triste constatação frente à qualidade do material, lançado no disco simples. Banda entrosadíssima e ótimas composições, boa qualidade sonora e energia pura. Esperamos que ainda algum dia esse imenso equívoco seja desfeito e o show seja lançado na íntegra, como era o desejo da banda. O Casa das Máquinas daria uma outra guinada em seu som, dessa vez partindo para o rock n’ roll básico e pesado. Com a entrada do performático vocalista Simbas, a banda assume uma identidade mais “glam” no disco “Casa de Rock”, disco que teve como hits a faixa título, “Jogue tudo para a cabeça” e “Stress”. Esse seria o último disco da banda, que no fim de 77 se envolveria num polêmico episódio com um técnico da Rede Record. A banda iria tocar no estúdio da emissora e depois de um acidente entre um veículo da emissora e outro da banda, iniciou-se uma discussão que descambou para pancadaria. O técnico em questão apanhou bastante na confusão e já tinha a saúde debilitada. Pra não queimar o filme do pessoal que se envolveu na briga, o técnico foi instruído pela segurança da emissora a não contar nada. No dia seguinte, o cara piorou e morreu no hospital, com rompimento do fígado e duas costelas fraturadas. Isso sujou totalmente a carreira da banda, que só conseguiu seguir por um pouco mais de tempo, até 78. O julgamento acabou inocentando parcialmente os membros da banda, com Simbas pegando 1 ano de prisão por homicídio culposo (que cumpriu em liberdade por ser réu primário) com a responsabilidade sendo dividida com seu irmão, que na época era menor de idade.


Quem estreou em disco em 76 foi o Joelho de Porco, com o disco São Paulo 1554 Hoje. Existe certa divergência de informação quanto a data do lançamento do disco – alguns dizem ser de 73, outros de 74. Mas em consulta a revistas do período, 76 é a data em que se propagou este lançamento e os shows que a banda passou a fazer. O grupo era composto pelo baterista Próspero Albanense, Ricardo Petraglia no vocal, Tico Terpins no baixo (o principal compositor da banda), Serginho Sá no piano, Flavinho Pimenta na bateria, Didi Guder com a percussão e Walter Bailot na guitarra. O Joelho de Porco passou a ser um marco no período pela interessante combinação de um rock possante com um humor ácido e escrachado, usando eventualmente para tal, ritmos caribenhos, vaudeville e doo-wop em suas composições. As letras revelam uma visão crítica (feita com bastante irreverência) do cotidiano da megalópole paulista e musicalmente existem ali pérolas do nosso rock setentista, como “São Paulo By Day”, “Meus Vintes e Seis Anos” e “A Lâmpada de Edson”. Outra estréia também foi a do Bixo da Seda. A banda surgiu a partir do grupo Liverpool, formado em 67 no Rio Grande do Sul. Gravada em 69, com o instigante nome de “Por Favor Sucesso”, a estréia vinílica da banda não surtiu o efeito que o nome pregava, mesmo fazendo um bom som na esteira psicodélica-tropicalista. No ano seguinte, a banda seria responsável pela trilha do filme “Marcelo Zona Sul”, com Françoise Fourton e Stepan Necessian, hoje bastante disputado por colecionadores. O grupo passou a radicar-se no Rio de Janeiro e encerrou as atividades em 73, com vários dos músicos voltando para o sul. Em 75, um novo encontro dos músicos Foguete (vocal, flauta e percussão), Mimi Lessa (guitarra), Marcos Lessa (guitarra) e Édson Espíndola (bateria) geraria o Bixo da Seda. Após gravarem o disco, em fins de 75, se mudariam novamente para o Rio de Janeiro, onde agregaram Renato Ladeira (ex-A Bolha, tocando teclados) e durante o período também Vinícius Cantuária, numa época em que passaram a tocar com duas baterias. Fizeram muitos shows em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, tocaram no Festival de Rock da Praia do Leste (ou Festival Rock de Verão, no Paraná) e no Festival Som, Sol e Surf em Saquarema. O disco saiu em 76, batizado de “Estação Elétrica”, mesclando um rock n’ roll de primeira qualidade, por vezes pesado e com alguns toques progressivos no instrumental. Depois do disco, houve algumas trocas de formação até o fim dos anos 70, sendo que uma parte da banda passou a acompanhar o emergente grupo pop-disco “As Frenéticas”. O disco acabou sendo o único do grupo, que se desmanchou depois de mais alguns poucos anos. Em 76, a banda A Barca do Sol lançou seu trabalho definitivo – “Durante o Verão”, novamente com produção de Egberto Gismonti. Tão lírico quanto os anteriores, com mais guitarra elétrica e bateria, esse disco é um ponto alto na música do período, mesmo não sendo puramente “rock”, como a própria banda gostava de deixar claro. Ainda A Barca do Sol gravaria mais um disco, chamado Pirata, em 78 e um outro disco em parceria com a cantora Olivia Byington.


O Festival Som, Sol e Surf é um capítulo um pouco escuro da história de nosso rock, porque há pouquíssimas informações a respeito do acontecido. Organizado por Nélson Motta, os poucos relatos sobre o festival são feitos pelo próprio, que repetidamente o descreve como um grande fiasco, tanto artístico quanto de público. Logo no primeiro dia, na cidade litorânea de Saquarema, no estado do Rio de Janeiro, uma chuva forte abateu o local do evento, prejudicando a estrutura organizada e o cronograma. Fora isso, o público foi bem abaixo do esperado e o organizador ficou praticamente falido. Tocaram lá as bandas Made in Brazil, Vímana, Raul Seixas, O Terço, Bixo da Seda e Ângela Rô Rô (na época uma estreante cantora), entre outros. Para exemplificar como estavam as coisas naquele ano, Nélson partiu para um projeto muito mais bem sucedido, onde conseguiu saldar todas as suas dívidas – a boate Dancin’ Days, na Gávea, embarcando fundo na onda da disco-music e abandonou de vez a idéia dos festivais de rock ao ar livre.


Em Minas Gerais, apareceria o Saeculum Saeculorum, que havia começado em 74. Participaram de um grande festival em Minas, chamado “Camping Pop” e em 76 entraram em estúdio para registrar uma fita demo, a fim de negociar um contrato com a gravadora Warner. O contrato não rolou e o material ficou esquecido, com a banda encerrando as atividades em 77. Somente nos idos de 1996 é que esse material veio à luz, graças ao garimpo do violinista do grupo, Marcus Viana (futuro integrante do grupo Sagrado Coração da Terra). A formação do grupo era Marcus Viana (violino e vocais), Giácomo Lombardi (piano), José Audísio (guitarras), Bob Walter (bateria), Edson Plá Viegas e Juninho (baixo) e a gravação revela um som de grande qualidade musical, numa linha sinfônica e com instrumental de primeira grandeza. 


76 também assistiu o lançamento do primeiro disco do Terreno Baldio (que foi gravado ainda em 75), grupo paulistano que já estava na estrada dando o que falar. A formação clássica da banda era João Kurk nos vocais e flauta, Mozart Mello na guitarra, Roberto Lazzarini nos teclados, João Ascenção no baixo e Joaquim Côrrea na bateria. A história do grupo começa pelos idos de 66, quando Rodolfo Ayres Braga e Joaquim Correa formaram a banda Islanders, junto de João Kurk e Roberto Lazzarini, que era uma banda de covers que se concentrava em tocar o que havia de mais “underground” em termos de hard e rock psicodélico. Ficaram juntos nesse projeto até 71. João Kurk também participou de outro grupo de covers, chamado Utopia. As cabeças foram evoluindo até que João e Roberto partiram para as idéias próprias, por volta de 73-74, influenciadas pelas grandes bandas progressivas inglesas – Yes, Camel, Renaissance, Gentle Giant, etc. O disco homônimo, estréia da banda, também sofreu de um mal similar ao que acometeu o lançamento do disco ao vivo dos Mutantes e também do não-lançamento da suíte “Amazônia” do Som Nosso de Cada Dia. Por pressão da gravadora, a banda não conseguiu gravar todo o material que tinha composto na época, previsto inicialmente para um disco duplo. Seus shows no período eram compostos de três movimentos – Aqueloô, Pássaro Azul e Terreno Baldio. É triste observar a produção pobre do disco, com um som fraco e mal equalizado, anos-luz distante da qualidade musical das composições, da letra e da interpretação do grupo. No ano seguinte, o Terreno gravaria outro importante trabalho – “Além das Lendas Brasileiras”, com uma formação diferente.


Considerações Finais


Sem complexo de inferioridade e nem auto-estima nacionalista exacerbada, a história do rock brasileiro no período é valorosa, primeiramente pelo esforço imenso de tantos talentos envolvidos em lutar por sua arte e também pela competência musical demonstrada, obstante o fato de que o que ficou para a posteridade não tenha (em grande parte) uma qualidade técnica à altura das obras e nem sempre ser a representação do som que as bandas faziam no palcos, pelas pressões de produtores e gravadoras, que sempre insistiam num som mais palatável, comercialmente falando. Os obstáculos postos pela ditadura dificultavam os encontros, os shows e a concentração de apreciadores, dificultava a importação de instrumentos e equipamentos de boa qualidade e censurava os lançamentos (das bandas locais e das estrangeiras). Frente a isso, com bravura, se desenvolveu uma música jovem que nem sempre foi movida totalmente pela originalidade (algumas influências nítidas de bandas internacionais se percebem no som daqui, assim como ocorreu com freqüência em muitos outros países do mundo), mas representou com grande qualidade a geração a que pertenceu, seu senso musical mais aberto e disposto a experimentações musicais, estabelecendo novas fronteiras dentro do rock, que são devidamente execradas pela crítica atual. É lamentável saber que muitos trabalhos da época ainda andam perdidos por aí em porões e estúdios, aguardando o feliz dia de virem à luz. Mais lamentável ainda é ver a grande quantidade de bandas (muitas delas de grande potencial, segundo os relatos de quem os conheceu) que nem mesmo chegou a gravar algum material.


Fica a história ainda obscurecida pela grande mídia, nesse período, especialmente pela idéia largamente vendida de um “vácuo” entre a jovem guarda, na metade dos anos 60, e a onda pop-rock dos anos 80, ignorando sumariamente que muitos dos nomes que despontaram nos anos 80 já tinham experiências musicais muito mais interessantes em anos anteriores.


Para finalizar, fica o apelo de que se alguém se identificar como um dos músicos das bandas citadas favor se manifestar, fazendo eventuais correções nas informações e acrescentando histórias do período, para engrandecer ainda mais a memória deste período incrível.


Alguns sons representativos do período:


Casa das Máquinas - A Natureza
Raul Seixas – As aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor
Rita Lee & Tutti Frutti - Ciclo Vicioso
A Barca do Sol – Brilho da Noite
Sá & Guarabyra - São Nicolau
Mutantes - Pitágoras
Som Nosso de Cada Dia - Massavilha
Arnaud Rodrigues - Murituri
Assim Assado - Lunática Marciana
Novos Baianos - Alunte
Moto Perpétuo - Conto Contigo
Perfume Azul do Sol - Era de Aquarius
Ave Sangria – Momento na Praça
O Peso - Eu não sei de Nada
O Terço - 1974
Rita Lee & Tutti Frutti - O Toque
Lula Cortês e Zé Ramalho - Raga dos Raios
Apokalypsis - Amanhã
Veludo - Egoísmo
Luiza Maria - No fundo do Poço
Casa das Máquinas - Astralização
Mutantes - Loucura pouca é bobagem
Terreno Baldio - Este é o lugar
Bixo da Seda - Vênus
A Barca do Sol – Pilares da Cultura
Saecula Saeculorum - Acqua Vitae
Alceu Valença – Punhal de Prata
O Terço – Solaris
Joelho de Porco - Meus 26 anos


Bandas ativas na época das quais não se tem informação suficiente nem registros e que não foram citadas ao longo dos textos:


- Pêndulo Mágico
- Fogo de Santelmo
- Sociedade Anônima (de Rui Motta antes de ingressar nos Mutantes)
- Flor de Lótus (de Luciano Alves antes de ingressar nos Mutantes)
- Onomatopéia (de John Flavin)
- Legião Estrangeira (de Celso Blues Boy, Ernesto Blogg e Fernando)
- Humauaca (Billy Bond, Américo Iça, Daniel Mencini, Emílio Carreira, Willy Verdaguer, Dudu Portes, Chico de Medori, John Flavin e Márcio Werneck)
- Erupção
- Ninfas
- Tapete Mágico
- Grupo Cartaz
- Conjunto Habitacional


(Se alguem se manifestar sobre a matéria conforme o colunista Ronaldo Rodrigues falou, pode mandar um mail para fabiano@alquimiarockclub.com.br e ronaldo@solidrockradio.com.br !)



Ronaldo Rodrigues

 Ronaldo Rodrigues é Colaborador Esporádico




blog comments powered by Disqus