Além dos Cogumelos

Paixao pelo som 70

Por Ronaldo Rodrigues | Em 04/07/2010 - 20:49
Fonte: Alquimia Rock Club

Nós escolhemos do que gostar, mas tem certas coisas que parecem nos escolher. Escrever sobre a história de bandas, resenhar discos ou tentar levantar informações sobre grupos desconhecidos por vezes esconde, sob um véu jornalístico e racional, a real motivação deste empenho – a paixão. No meu caso, essa paixão é especificamente o rock do período 1967-1978. O sentimento levado a um alto grau de intensidade, que é capaz até de nos cegar. Paixão não se explica, mas é o que tentarei. O porquê dos porquês atinge uma subjetividade tal que é difícil o explicitar sem entrar no campo das experiências pessoais. Dizer apenas analiticamente o porquê desse gosto e dessa sanha por um estilo e uma época será uma exposição incompleta, mas servirá pelo menos para jogar uma luz de racionalidade por cima do sentimento, tomando o devido cuidado para não descambar para uma nostalgia forçada.


O conceito de rock é muito aberto e justamente a época a que me refiro é a que representou a abertura escancarada deste conceito e as reações que isso provocou na própria juventude. O contexto social era um rompimento com padrões e conceitos vigentes, o estabelecimento de novos paradigmas, a busca de ideais coletivos e especialmente a luta (no campo político, social ou artístico) que se travava direta ou indiretamente pela liberdade individual, a que se prestam melhores relatos e explicações dezenas de livros e teses. Prefiro entender o rock dentro da música jovem. Porque o jovem era o grande catalisador da transformação, era ele que não queria mais seguir o mesmo caminho que seu pai e mãe seguiram, não queria se vestir e ouvir a mesma música que eles, não queria ter a mesma opinião, a mesma atitude. A música que o jovem do período produzia era um reflexo ou até um escape daquilo tudo. Portanto, há de se entender que o teor de emotividade e a atitude que a música do período carregava eram diferenciados, porque havia uma conjuntura que estava mudando e muitos não estavam alheios a isso. Um contexto que depois dessa época passou a não ter a mesma relevância e se modificou totalmente nos dias de hoje; um contexto que influenciou a produção artística e a produção de rock.


A produção do rock da época pode ser entendida assim como um grande amadurecimento. O rock passou de uma fase adolescente - beat, sunshine pop, mod, surf rock, etc - para uma fase de plena juventude, em que normalmente se fundamentam as ideologias e se aflora a plena liberdade do indivíduo, já não tão preso ao conceito da família e onde se abre terreno para todo tipo de vivência.


O amadurecimento das idéias é que torna o rock dessa época tão fascinante. Os Beatles são a prova maior disso e ditaram o paradigma. Abriram-se novos caminhos, as fórmulas passadas estavam caminhando para o esgotamento. O primeiro amadurecimento que se percebe é a liberdade de criação – introdução de novos instrumentos na linguagem do rock (flauta, cítara, percussões, sintetizadores), novas técnicas de gravação (adição de efeitos sonoros, mixagem invertida, som estéreo, som quadrafônico) e a permissividade para se aproximar de outros estilos musicais. O frescor da experimentação e o ar da novidade são sempre mais interessantes do que o maneirismo de algo consolidado, assim como um amor novo ou uma nova descoberta. E os louros quase sempre ficam com os precursores (à exceção de uma ou outra injustiça). Milhões de pessoas conhecem Santos Dumont por seu avião e seu pioneiro vôo. Hoje, um engenheiro projeta um avião milhares de vezes melhor e mais sofisticado que o 14-Bis, mas permanece quase que no anonimato.


Além da inovação e do “passo a frente” que o rock deu em fins dos anos 60, o ecletismo é uma marca registrada do período. Era a liberdade total em termos de rock, valia tudo. De resgatar velhos blues até inventar uma maluca mistura de rock com qualquer coisa, de fazer música com vários movimentos (como se fosse uma sinfonia) à experimentos com ruídos e música eletro-acústica, acontecia de tudo. Claro que nem tudo foi assimilado, mas o espírito da época permitia que essas coisas surgissem com muita naturalidade, fluidez, em quantidade expressiva e em geral até por grandes gravadoras. Seria possível estabelecer um paralelo, um ponto comum, entre Deep Purple, Wishbone Ash, Gentle Giant, Santana, Traffic, Pink Floyd, Neil Young, Mahavishnu Orchestra e Grateful Dead? Era bem provável que uma pessoa que ouvisse uma delas, ouvisse e gostasse das outras. Não por serem parecidas, mas pela qualidade de todas e sua abordagem diferenciada por cima do mesmo contexto. Era uma via de dupla alimentação – um público receptivo a novos sons favorecia o surgimento e o estabelecimento de bandas com novas propostas e as propostas sonoras de determinados grupos (especialmente aí os dos anos 60) permitiram o florescimento de uma nova cultura no público. É nesse ponto que muita gente se identifica com a época, pelo conceito aberto e despido de muitos preconceitos e idéias-fixas que imperam nas ditas “tribos”, que existem aos borbotões por aí e que se debruçam apenas sobre um estilo musical. Pessoalmente, o rock do período foi a porta de entrada para outros estilos como o soul, o funk, o jazz, o blues e a MPB, e vejo muitos outros amigos que seguem ou já seguiram a mesma trilha. Até porque o rock dessa época “transou” com tudo isso e muito mais e esses estilos, no período, também flertaram bastante com o rock. A forte indústria fonográfica (estúdios, selos, rádios, produtoras) da época abriu-se para os novos padrões que o rock estabelecia, porque não aceitar a ousadia dominante do rock do período seria como fechar-se a uma farta parcela do público. Brotaram centenas de álbuns conceituais, bandas de rock instrumental, músicas quilométricas, experimentação, capas malucas, enfim....


A sonoridade analógica é algo que eleva a obra dessa época. Quem conhece o universo dos instrumentos musicais e dos equipamentos sonoros sabe que o “vintage” tem peculiaridades que a parafernália digital não iguala, e a isso se deve seu valor, que geralmente beira a estratosfera. Basta ver por aí o preço de um órgão Hammond C3 (se você encontrar alguém que o venda), ou de uma antiga bateria Ludwig. Isso não ocorre à toa. Estes instrumentos e equipamentos clássicos, correntemente usados na época, em sua maioria eram produzidos quase que artesanalmente e não em linhas de montagem. Pode-se observar, como exemplo, que os vocalistas nas décadas de 60 e 70 não cantavam com a boca colada ao microfone como ocorre hoje, porque as captações e resoluções dos microfones antigos ainda continuam superiores. Se uma banda entrar num estúdio para regravar, com tecnologia atual, um clássico disco gravado em 1971, por exemplo, com toda a certeza os fãs da banda ainda irão preferir o disco da época. E poderia listar muitos exemplos, adentrando no “tecniquês” da música, para corroborar minha tese. Os recursos de estúdio eram bem mais limitados e isso forçava as bandas a terem de explorar ao máximo o que tinham na mão e ter o instrumental bastante afiado, pois as gravações não permitiam ajustes via computador, um recurso largamente usado atualmente. Então, o que quero dizer é que o cara que entrava num estúdio para gravar um disco sob uma gravadora (não incluindo as poucas gravações independentes da época) era de fato um músico de muito bom nível. O fato de haver ainda o monopólio do registro fonográfico pela indústria, a preços proibitivos, filtrava bastante os talentos que adentravam os estúdios (isso não é de todo uma regra). A maneira mais crua com que a captação do som era feita, com a bateria sendo registrada quase que como um todo e não peça-a-peça, o manejo correto dos graves do baixo e a nitidez das distorções das guitarras (algo realmente físico, pelo excesso de volume do amplificador) é um grande diferencial em relação ao som contemporâneo, que milhares de bandas avidamente procuram (o chamado “som orgânico”). Poderia explicar a questão da sonoridade como comer comida feita em panela de barro – não se sabe bem o porquê mas ela tem um gostinho diferente, que é apaixonante. Ou então fazer uma analogia com o eterno embate vinil versus cd.


A questão da musicalidade é outro fator que desperta paixões pelo rock da época. Houve um avanço na musicalidade do rock e isso se manifesta pelo próprio interesse que o rock despertou em outros estilos mais sofisticados, como o jazz, por causa da relevância artística que atingiu. Os jovens garotos que estudavam música nas academias passaram a ver o rock como uma forma de se expressar, que os atendesse em seus anseios tanto pessoais quanto musicais, deixando de lado a execução pura e simples do erudito para confluir a virtuose a um plano onde as idéias pudessem ser mais expansivas e terem menos rigor de forma. Além disso, como o rock estava em construção, se firmando ainda numa história recente (de menos de duas décadas), ele próprio ainda não servia de total fundamento auditivo para quem se aventurava a tocá-lo, ou tocando, naturalmente o produzia. Quem tocava rock no começo dos anos 70, praticamente passava a infância ouvindo jazz, blues e r&b ou então estudando música erudita. Uma visão bastante pessoal minha atribui a isto o charme do rock dos 60 e 70, por se conceber de elementos distintos, que numa dada combinação, em diferentes proporções de elementos e num dado contexto, foi que produziu aquele resultado. Hoje o rock que se produz já parte de influência primeira do rock, o que vai o tornando gradativamente limitado e imitador. A ausência do jazz e do blues do imaginário coletivo da moçada, a meu ver, empobreceu muito o rock, somado com a cultura do “do it yourself” dos punks, que decretou a medianez musical no rock e passou a determinar o rechaço a uma musicalidade mais requintada. Isso foi culpa também do sucesso e da magnitude que o próprio rock atingiu mundialmente.


Toda a forma de arte, assim como quase todas as manifestações humanas, passa por um auge. Sem sombra de dúvidas, até então, o auge do rock como cultura foram os anos 60 e 70. Auge de criatividade, de repercussão, de fama, de expansão. Por mais que muita gente não concorde em termos de gosto, nenhuma outra época permitiu a gestação e o amadurecimento de estilos tão diversos como o heavy metal, o punk rock, o rock progressivo, o fusion e a música eletrônica, que englobam em suas derivações, quase tudo que se faz de música hoje. 


Espero com o texto ter conseguido juntar alguns argumentos para provar porquê o rock dos anos 60 e 70 me ferve tanto o sangue.



Ronaldo Rodrigues

 Ronaldo Rodrigues é Colaborador Esporádico




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