Banchee
O injusto contar do tempo tratou de pôr na gaveta pérolas e mais pérolas da música. E continua colocando. Para quebrar essa lógica absurda, a receita é ter muita boa vontade para garimpar e tentar reverter um quadro extremamente adverso de leviandades mercadológicas. Um capítulo dessa longa história de injustiças chama-se Banchee, uma genial banda formada nos EUA no fim dos anos 60. Seu som é tão poderoso e transcendente que nos obriga a discorrer, ainda que de maneira pouco reveladora (tendo em vista os parcos registros históricos de sua existência), sobre sua trajetória e sua música incrível.
A banda foi formada como um quarteto de ítalo-americanos de Boston (cidade que possui uma grande colônia de italianos) - Peter Alongi e José Miguel de Jesus nas guitarras,
Victor William Digilio nas baquetas da bateria e Michael Gregory Marino no contrabaixo. Com exceção de Victor, todos cantavam. José Miguel era o compositor principal da banda. Pouca informação se sabe sobre os caras. O talento da banda chamava a atenção na cena local e descolaram um contrato com o selo Atlantic (Vanilla Fudge, MC5, Iron Butterfly, Golden Earring…), que na época estava despontando no cenário, com nomes como os badalados Crosby, Stills & Nash e os emergentes Led Zeppelin e Yes.
O primeiro disco foi produzido por Warren Schatz (compositor e condutor de orquestras nos anos 60 e 70) e Stephen Schlaks (também compositor e que possui alguns discos gravados como artista solo). No dia do casamento de Peter, a banda estava em estúdio finalizando o disco!
Vocais na medida tal qual Crosby, Stills & Nash, Byrds ou Guess Who, dosado com country-folk como Buffalo Springfield, guitarras prodigiosas à la Quicksilver Messenger Service, composições espetaculares em influências muito bem adquiridas e trabalhadas. Some a isso aquele clima campestre-estradeiro típico do som norte-americano, sem esquecer-se de um bom trago de psicodelia. Isso é, ainda arriscado a ser de empobrecedora definição, o primeiro disco do Banchee.
A estréia da banda em 1969 é um primor, um condensado de ritmos e influências das mais diversas, deliciosamente balanceadas. As composições são únicas, fortes, marcantes, inteligentemente construídas e tocadas com emoção notável. O início é tranqüilo com “Night is Calling” e suas esmeradas linhas de guitarra e vocais altamente entrosados; “Train of Life” parece, a princípio, um cruzamento de Byrds com The Move, mas no meio aparece apimentada com um toque de jazz na rítmica; “As me Thinks” é a genialidade da banda aflorando em seu psicodelismo – vocais perfeitos, timbres de guitarra acidamente saturados e aquele som que só iniciado entende... sem contar a levada latina que surpreende no meio da canção! ; “Follow a Dream” é uma canção bucólica, mesclando um clima mais intimista com outro quase dramático e possui geniais arranjos de orquestra; “Beatifully Day” é outra pérola do disco, alterando os climas magistralmente, quase que como uma suíte - perfeita! ; a intro repleta de fuzz e extravasando psicodelia abre alas em “Evolmia”, com suas guitarras e andamentos quebrados (seria um anagrama para Am I love?); a banda, ainda não cansada de fugir do lugar comum, faz um misto de Quicksilver e Byrds com peso extra na rockeira “I Just Don’t Know” e seguem mais sacadas geniais, coisas de quem domina muito bem o instrumento; de “Hands of Clock” pode se dizer algo como “surpreendente” para suas nuances; o giro termina (infelizmente é curto, 38 minutos) com a deliciosa e pesada “Tom’s Island” que fecha apoteoticamente com um riffado simples de guitarra, porém muito bem sacado, para o passeio ácido de um deleite guitarrístico.
Infelizmente (e por razões desconhecidas), o disco não vendeu bem. Uma absurda constatação frente à qualidade vocal e instrumental do Banchee. Em 1970, lançam como compacto as músicas “I just don’t know” e “Train of Life”, sem repercussão também. Foram despedidos do selo Atlantic mas continuaram trabalhando. E evoluindo. Durante o ano seguinte, trabalharam em material novo, captando os novos movimentos – a geração do hard e do rock progressivo era o quente do momento. Acrescentaram-se ao núcleo central da banda dois percussionistas - Johnny Pacheco e Fernando Luis Roman, que também contribuía nos vocais. A banda era bem relacionada nos meios roqueiros. Conseguiram gravar o segundo disco no Eletric Ladyland’s Studio. Dessa vez, o trabalho seria gestado pelo selo Polydor (casa de Cream, The Who, Taste, The Move…). Em 1971, é lançado Thinkin’.
A banda usou muito bem os recursos técnicos que estavam disponíveis (estéreos, wah-wah, fades, etc) em um trabalho muito bem capturado nos sulcos do vinil. A energia fluía de suas novas composições. Usaram e abusaram das percussões, andamentos quebrados, solos mais longos e de sua liberdade criativa. “Thinkin” é um disco que tem uma tendência ao hard-rock um pouco mais definida, mas a inventividade da banda fazia com que sua música não soasse apenas como um sisudo e pesado rock n’ roll. Era intrínseco ao espírito da banda ir além. A larga utilização dos instrumentos de percussão direcionava o som para um lado mais Santana enquanto as guitarras se encarregavam de apimentar o som com riffs deliciosos. O disco começa com “John Doe”, que, sem margem de exagero, é uma das melhores composições do grupo e também seu momento mais pesado. O trabalho de guitarra está ainda mais rebuscado, em frases dobradas e numa inteligente utilização dos campos harmônicos. A faixa título do disco lembra bastante o clima do primeiro trabalho, como se fosse um novo cruzamento de The Move com o Byrds, mas já com aquele cara de anos 70. Dá pra associar um pouco da sonoridade deste disco com o segundo disco do Captain Beyond, mas sem esquecermos-nos do toque altamente peculiar do Banchee nos vocais e nas composições. Outra jóia do rock.
Fama local foi o máximo que esse pessoal conseguiu e seu nome, como o de muitos outros grupos, foi direto para a sala dos injustiçados do rock setentista após a debandada em 1971. Os músicos sumiram do cenário. Alguns deles continuam atuando com música somente por entretenimento pessoal. Em 2001, o selo Lizard relançou com capricho os dois discos do Banchee em um único CD, o que propiciou que uma nova geração de garimpadores de bons sons pudesse tomar parte desse tesouro sonoro.
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Ronaldo Rodrigues é Colaborador Esporádico