Moleques do Brasil
“É melhor ser alegre que ser triste/ Alegria é a melhor coisa que existe”, cantou Vinícius, o já citado “poeta que viveu como poeta”, disse Drummond. A felicidade era uma experiência de vida. E por que a gente não fala de uma, aqui, agora? O nome é “Acabou Chorare”, a banda é “Novos Baianos”, aquela de Baby, de Luiz Galvão, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor, Jorginho, na bateria, e o grande Moraes Moreira. Não dá pra esquecer da banda de apoio, os que depois daquele momento se fariam conhecer por A cor do Som.
Esse disco é a própria terra, é o som que se pode pensar quando se quer dar música ao conceito de brasilidade. Amarra, principalmente, símbolos do sudeste e do nordeste, que são palco da experiência de vida da banda; toda baiana, não fosse a carioca Baby do Brasil, que já foi Consuelo, e sabe lá o quê mais. Não é apenas um falar a respeito do país, é colocar nos mínimos detalhes, do ritmo aos timbres, da pegada arrastada do Moraes até as cordas que pensou Pepeu, a comprovação sonora de que se está pisando solo tupiniquim.
Se vamos falar das letras, aí é que se confirma a natureza bastante clara desse desenho de mão cheia. Começando com Brasil Pandeiro, os Novos te jogam na cadência do samba, com a Baby evocando a coragem do povo,
“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor
Eu fui na Penha, fui pedir ao Padroeiro para me ajudar
Salve o Morro do Vintém, Pendura a saia eu quero ver
Eu quero ver o tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar”
No auge da ditadura militar, o álbum da banda que vivia em comunidade, que queria mesmo era ver o Tio Sam se render ao movimento, conquistar o mundo além-mar, feito o canto de Pessoa, foi uma bomba e, ao contrário da dos yuppies, essa daí marca gerações pela força da arte. As conseqüências são muito benéficas para quem entra em contato com o material radioativo, portanto, vamos aumentar o tempo de exposição e o volume.
Quando começa o violão, vai se desenhando o que acaba confirmando um clássico da música brasileira. Preta Pretinha é um mel, aos poucos eles vão adicionando a cachaça, a harmonia vai se preenchendo, o ritmo vai acentuando. O cavaco vai afiando a coisa na dentada. Depois de uma chacoalhada você estará entoando em coro, “ah, eu ia lhe chamar”, pra responder, imediatamente, “enquanto corria a barca”. É quase inevitável. Jorginho te puxa pra dentro da roda, não resista, “abre a porta e a janela, e vem ver o sol nascer”.
Tinindo e Trincando é um daqueles casamentos perfeitos entre rock e ritmos de natureza africana. Ave, Pepeu. De repente, pronto, está mergulhado num triângulo, a coisa soa nordestina, você é arrastado pela levada, mas não dura o bastante pra se apaixonar. O samba volta com força, a guitarra não entrega o jogo, e assim é que é, alternando os balanços, o baixo falando o indispensável. Agora, ponto alto, Baby arrasta a voz e acentua o “no duro”, e com uns dez “u”, ela diz que é “tinindo”. E vai até você se entregar de vez.
E assim a gente segue pelo digníssimo Swing de Campo Grande, passa pelo lirismo delicado e ritmicamente irresistível de Acabou Chorare, pela filosofia malandra de um animal social em Mistério do Planeta, a fortaleza de mulher segura e consciente de si, em A Menina Dança, e aqui paramos pra comentar um pouco a letra seguinte.
“Porque não viver?
Não viver esse mundo
Porque não viver?
Se não há outro mundo”
Não é só a ave de rapina que tinha de se render, mas as ilusões de um mundo melhor, noutro lugar, sabe lá quando, com quem. É o canto a favor do corpo e da alma, juntos, no gozo do espírito e da carne. São bacantes, legítimos discípulos de Dionísio. E a quem acha que é desequilibrando a balança que se consegue alguma coisa, o recado é muito claro, Besta é Tu. Por fim, quando acaba o solo instrumental do álbum, com as vozes se rendendo a Um bilhete para Didi, o ouvinte tem a mais nítida visão do horizonte brasileiro, que não reflete Peri, nem Macunaíma, mas aquele que se faz sempre com mais de um e traz o mundo na sacola. Ainda tem uma reprise de Preta Pretinha pra você sair avonts e voltar mais vezes.
Formado em Literaturas de língua portuguesa pela UFRJ, onde atuei como pesquisador de ficção brasileira contemporânea. Atualmente trabalho como professor de português para estrangeiros e, acredito que em breve, professor de inglês pra um projeto da Secretaria de Educação do RJ em parceria com a Universidade Federal e a ONG "CCCM", lecionando nas comunidades que foram pacificadas pela polícia.