Resenhas

Ratos de Porão - 26.11.2021 - La Iglesia Borratxeria, São Paulo, SP

Por Vagner Mastropaulo | Em 13/12/2021 - 00:55
Fonte: Alquimia Rock Club

Fotos: Yuri Murakami (@yurimurakami_

 

Quando este escriba soube dos shows comemorativos do Ratos Do Porão tocando na íntegra os cinco full lengths inaugurais de sua discografia, haviam sido confirmadas as datas extras e restavam ingressos referentes apenas ao segundo par delas: Descanse Em Paz (86).

 

A capa do álbum Descanse Em Paz de 1986

 

Um limitado lote adicional instigou a vontade de testemunhar como soariam cada uma das gravações, de Crucificados Pelo Sistema (84) a Anarkophobia (91), ao vivo hoje, porém a cobertura da Rocking Your Life Acoustic Tour [http://www.alquimiarockclub.com.br/resenhas/7291] no Tom Brasil em 19/11 e uma festa de família na outra noite nos afastaram da abertura da série. Para não ficar boiando, mesmo porque seríamos incapazes de descrever La Iglesia Borratxeria tal qual o amigo Marcos Franke, indicamos o acesso a um portal co-irmão [https://www.headbangersnews.com.br/agenda/40-anos-de-ratos-de-porao-crucificados-pelo-sistema].

 

Entrando compreendemos a restrição de cento e poucas pessoas: trata-se de um acanhado espaço de cerca de 10m x 10m e palco diminuto, setor de camarotes no andar de cima e a certeza de conferir as pedradas seja lá onde estiver! Se João Gordo (vocal) permanecia recluso em algum porão, Boka (bateria) cruzava a pista tão tranqüilamente quanto Juninho (baixo) e Jão (guitarra) em meio aos fãs do lado de fora, conforme avistado em nossa chegada.

 

Já o horário de início se tornara um mistério: o site de vendas cravava 22:30, informações divulgadas à tarde garantiam ser meia hora antes, na dúvida aparecemos às 21:30 e às 22:26 “em ponto” o pau passou a comer solto! Na prática, todos conheciam o repertório ao menos por onze faixas e a graça residia no que Gordo aprontaria ao rememorá-las ou a quem as dedicaria. E assim ele abriu os trabalhos: “1986, viramos metaleiros, porra!”. “Cérebros Atômicos” emendada a “Morrer Mais Uma Vez” gerou constatações: o conteúdo lírico segue atualíssimo e o tempo juntos (o “R.D.P. 40 Anos” na camiseta de Gordo e no backdrop serviam de lembretes) desenvolveu os caras... Enormemente!

 

Sob gritos de “Ratos! Ratos”, o frontman contextualizou: “Valeu! Valeu! Se liga só: em 1986, o prefeito de São Paulo era o Jânio Quadros, velho! Tiozão pinguço cheio das idéias malucas, tá ligado? E essa música é dedicada a ele: ‘Velhus Decréptus’” e, dependendo da idade, você terá de pesquisar caso queira entender o “fi-lo porque qui-lo” derradeiro. O ex-VJ da MTV continuava explicando:

 

“Essa música agora é foda! Nessa época, eu, João Carlos e Jabá em experiências de tomar baque lá na Vila Piauí, velho... E passei muito mal uma vez, tomei vários baques, fiquei mal e aí criei essa música aí, que é a ‘No Junk’”. E então a roda, animal desde o começo, arregaçou de vez.

 

“Cara, está sendo muito legal tocar essas músicas que a gente não tocou nunca na vida, velho! Tocamos em 1986-87, depois não tocamos mais, cara. Tocávamos o quê? ‘Paranóia Nuclear’? ‘Juventude Perdida’? Mas tem essa que a gente vai tocar agora... Qual que é? ‘Sofrimento Real’”, tirando relativamente o pé do acelerador, dentro dos padrões punk, é claro: trinta segundos, se tanto, até o bicho voltar a pegar.

 

Rápida pausa e a citada “Juventude Perdida” alegrava a massa enquanto este repórter se ocupava em reparar nas demais camisetas: a de Jão, preta e irreverente: “Acesso negado ao Reino de Deus”; e Juninho uma que um dia foi preta de AssassiNation do Krisiun de Max Kolesne, no recinto, aliás – sem nos esquecermos da bandeira vermelha em apoio ao Movimento Sem Terra e do adesivo de Dio em seu Rickenbacker.

 

Devaneios à parte, o mestre de cerimônias detonava: “Valeu, pessoal! Estamos muito felizes de estar aqui com vocês nessa noite do caralho, pós-apocalipse, e ainda vai foder muito. Precisa tirar esse cara do poder aí, esse tal de Bolsonaro. Esse filho da puta, desgraçado do caralho. Atenção:” e em inacreditáveis seis segundos, despejou inteiramente os versos de “Paranóia Nuclear”, um aperitivo da cacetada curta e eficiente mostrada a seguir.

 

Tinha mais a caminho: “Teoricamente eu fiz essa música para o meu pai porque era uma época foda, né? E naquela época eu desejava que meu pai morresse de qualquer jeito! Velho gambé filho da puta desgraçado, cara!”. Jão deu nome ao boi: “Bastard! Seu Mílton, mano”. Gordo retomou: “Pô, Seu Mílton era gente boa, tadinho, meio retardado, por isso que ele zoou. Ele morreu em 2011 só, mas eu estava zerado com ele já. Essa música... Tira! Tira! Essa música é para o Bolsonaro, tá? ‘Descanse Em Paz’”. O relacionamento “sadio” é de domínio público [https://revistamarieclaire.globo.com/Celebridades/noticia/2020/12/joao-gordo-diz-que-o-pai-o-agredia-com-vassoura-e-fio-de-ferro-de-passar-roupa.html] e jamais imaginávamos inserir um link da Marie Claire numa resenha! É a vida...

 

Introduzindo “Fora Eu”, de engraçada letra (Heavy é o pai / Heavy é a mãe / Fora eu), um bem-humorado diálogo revelava a treta entre punks e metaleiros nos anos oitenta:

 

Gordo: Cara, essa música é foda! Na época, quando saiu o Crucificados e os punks viram ali aquele pé de galinha na bandeira: “Traidor do movimento”, certo? Aí a gente fazia hardcore: “Traidor do movimento”! E aí, uma perseguição fodida e naquela época não tinha WhatsApp, esses bagulhos, Facebook e tal, e já era uma perseguição fodida! A gente fez um textinho para a Bizz falando que não éramos metaleiros, queimando de vergonha, foi ridículo! Aí a gente fez essa música aqui.

 

Jão: Mas eu sou meio metaleiro assim...

 

Gordo: Eu sou total metaleiro, velho! É foda! Metal, porra!

 

Jão: Eu sou punk também!

 

Gordo: Eu também! Sou punk também!

 

A ela fora colaram “Aviso Final” e “Zona”, esta puxada com trecho similar a “Run To The Hills”, nada além de ligeira adaptação do play, terminado em trinta e dois minutos, cinco a mais em relação ao estúdio. Feito um breve intervalo, teríamos o chorinho em sacada bastante sutil: um registro por álbum, partindo retroativamente do “recente” Século Sinistro (14) e culminando em dobradinha de Just Another Crime In... Massacreland (94). Obviamente, sempre regado a novas e impagáveis interações Gordo-platéia, mas a primeira no retorno seria de Jão:

 

“Alô! Obrigado, velho, por vocês terem colado com a gente. Sei lá, mano... Tô velho! Acho que eu já tinha que pôr a dentadura no copo d’água...”, interrompido aos urros de: “Jão! Jão! Jão! Jão”. Anti-Nutella, ele tirou onda cortando o barato pela Raiz, com o perdão do trocadilho: “Ah, vai tomar no cu, caralho! Que porra é essa, mano? Tá louco? Ah, o disco acabou, né, meu? Acho melhor vocês irem embora...”. Como ninguém arredou pé, Gordo regressou a mil em jogral pré-“Conflito Violento”:

 

Gordo: Gás lacrimogêneo...

 

Galera: ...Bomba de efeito moral!

 

Gordo: Bala de borracha na cara...

 

Galera: ...Repressão policial!

 

Gordo: No conflito violento...

 

Galera: ...Desobediência civil!

 

Gordo: Caminhando contra o vento, bando de filho da puta, fascista do caralho!

 

Identificado na lateral e “dedurado” por Juninho, o vocalista prestou homenagens: “Palmas para o Luiz Calanca, que lançou o Descanse Em Paz, e está aqui presente”. Após a merecidíssima honraria ao dono da Baratos Afins, Gordo anunciou: “O que será de nossos filhos? ‘Testemunhas Do Apocalipse’”, de Homem Inimigo Do Homem (06). E ao escutar um gaiato pedindo “Periferia”, a resposta obtida foi: “Essa tocamos semana passada, velho”. Batendo na casa dos quarenta minutos de set, Gordo soou sincero: “Tô começando a ficar cansado aí”. Mal houve chance de o povo respirar e, de Onisciente Coletivo (03), fizeram “Engrenagem”.

 

A representante de Carniceria Tropical (97) trouxe divertimento: “Quem já tomou facada aqui, levanta a mão! Dói, hein? Quem morreu aqui, levanta a mão! Quem quase morreu? Ruim, hein? Ruim mesmo é tomar facada pelas costas, velho... Você está ali marcando, aí chega um cara por trás assim e enfia a faca nas suas costas, parece uma bomba na sua coxa. E não é assim que vou morrer... Sempre tive medo de facada... ‘Crocodila’!”.

 

Rumando ao fim, dois covers de “Feijoada Acidente?” (95), um internacional e um brasileiro: “Red Tape” e “Desemprego”. Encerrando o evento, as saideiras de Just Another Crime In... Massacreland: “Essa música aqui parece que foi feita ontem, cara... É foda! ‘Eeei!! É baixaria no congresso nacional. Liberou geral. Vamos foder, porra! Pau no cu do povo que sofre. Sofre, sofre, sem reclamar: ‘Suposicollor’”; e o último prego no caixão sucedeu um “Valeu, galera! Ratos De Porão, quarenta anos, porra!”, mandando bronca em “Quando Ci Vuole, Ci Vuole!” – fechando a performance matadora em aproximadamente cinqüenta e oito minutos de belíssima pancadaria sonora! Na boa? Não precisava de mais, somente na próxima semana...

 

 

Setlist:

 

Descanse Em Paz (1986)

 

01) Cérebros Atômicos

02) Morrer Mais Uma Vez

03) Velhus Decréptus

04) No Junk

05) Sofrimento Real

06) Juventude Perdida

07) Paranóia Nuclear

08) Descanse Em Paz

09) Fora Eu

10) Aviso Final

11) Zona

“Bonus Tracks”

12) Conflito Violento

13) Testemunhas Do Apocalipse

14) Engrenagem

15) Crocodila

16) Red Tape [Circle Jerks Cover]

17) Desemprego [Fogo Cruzado Cover]

18) Suposicollor

19) Quando Ci Vuole, Ci Vuole!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Prestigie o quarteto ainda mais assistindo ao mini-documentário a respeito das apresentações de Descanse Em Paz disponibilizado no próprio canal do grupo no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=sA7pj01CLyc

 

E se curtiu o estilo de filmagem, há também o vídeo sobre Crucificados Pelo Sistema: https://www.youtube.com/watch?v=q0qb9uOgdTU

 


Vagner Mastropaulo

Bacharel em inglês/português formado pela USP em 2003; pós-graduado em Jornalismo pela Cásper Líbero em 2013; professor de inglês desde 1997; eventualmente atua como tradutor, embora não seja seu forte. Fã de música desde 1989 e contando... começou a colaborar com o site comoas melhores coisas que acontecem na vida: sem planejamento algum! :)




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